Ser Mulher é ter de se dar licença de gozar



Para muitos talvez soe novo dizer que a prática do sexo transcende o corpo. Para uma mulher - nascida ou criada - esta percepção se faz viva mesmo quando não chegou à consciência. Num corpo onde a sexualidade está, por condicionamento e redução, centrada na vagina, pode haver muitos mundos a desbravar até que se assimile a ideia de um orgasmo pleno. Uma mulher passa por camadas e camadas do seu Ser até que chegue ao aspecto físico de sua vivência sexual. O ainda misterioso gozo feminino permanece cercado de tantos tabus quanto a liberação da mulher envolve, e possivelmente continuará envolvendo por bastante tempo a vir. Desde uma educação repressora quanto ao próprio corpo e a naturalidade de seus prazeres, até a sexualização precoce e violenta de seu centro íntimo, a mulher transita entre uma liberação que por vezes ainda a objetifica, e a negação de uma anatomia que a faria mergulhar em espaços profundos, muito além da fisicalidade, liberta dos condicionamentos da mente. 
Sim, ser fêmea na anatomia frequentemente traz antes a experiência de não viver no próprio corpo porque este corpo é transformado em vilão ou objeto, alvo de vigilância geral vinda desde a própria família até a igreja e o Estado. Não raro, o corpo de uma mulher não lhe pertence, e não estou me referindo às culturas onde a dominação está explícita. Longe de estar óbvio para quem não vive esta realidade, e tantas vezes até para quem a vive, é fundamental explicitar que ser mulher é antes um exercício diário e permanente de clamar para si o pertencimento do próprio corpo. É criar a delicada comunhão que habita na dança de desconstruir e apropriar-se. Desconstruir o que há de dor dentro e fora de nossas mentes a respeito de tudo o que o corpo feminino simboliza e é. Apropriar-se daquilo que, por definição, nem mesmo deveria ser uma conquista, mas que necessita ser (re)tomado por quem a ele pertence e dele tem o controle. Só depois de tudo isto é que podemos, as mulheres, voltar a viver no próprio corpo, sentindo nele a presença e o pertencimento já natural ao homem. Percebe como são experiências completamente distintas? Em suma, ser mulher é ter de se dar a licença de gozar. Veja como este movimento é intrincado em mil fatores que fogem à relação feminina com o corpo mas que, ao mesmo tempo, nela inferem diretamente. 
Para começar a tirar alguns véus, é imperativo que acolhamos a (nada) sutil diferença entre penetrar e ser penetrada. Muito do desencontro entre masculino e feminino na prática do sexo hétero talvez nasça deste lugar. Longe de dizer que o gozo pleno dependa ou esteja ligado apenas à isto, ainda assim é indispensável que os homens que se relacionam com mulheres e as mulheres que se relacionam com homens compreendam que a experiência do sexo para ela, penetrada, é substancialmente diferente da que ele está tendo ao penetrar, além do abismo que existe entre a experiência de ter a parte mais interna de seu corpo preenchida por um corpo externo versus ser o corpo que faz o movimento de preencher. 
A mulher, quando recebe o parceiro dentro de si, está "recebendo" também todas as referências que possa carregar em sua mente e em seu ser daquilo que se abrir para o sexo e para a exclusiva entrega ao prazer possa significar. Ela está se abrindo a receber sem qualquer reserva ou proteção um masculino que pode, em muitos casos, estar atrelado à dor, ao abandono, à violência, à dominação, ainda que o atual parceiro não signifique nada disto, as referências estão lá, e podem ser referências de uma vida, inconscientes e profundas. Ela está se abrindo ao fato de se deixar preencher sem qualquer garantia prévia de que esta entrega será boa também para ela. De que se sentirá cuidada, preservada, e porque não, admirada, na explícita demonstração de todo o transbordamento sexual que é sim muito capaz de acessar, se ela se der a licença de fazê-lo. 
Até o sexo para a mulher depende da comunhão com o outro enquanto falarmos de um lugar de feridas a curar e emoções a cicatrizar e acolher no que diz respeito ao masculino e também às nossas próprias percepções sobre nós e nossa sexualidade. A mulher percorre o caminho de abrir espaço para sentir o prazer pelo prazer e, se for de sua escolha, incluir nisto o corpo masculino que vem sendo símbolo de muitas curas profundas a vivenciar. Estamos sedentos por vivenciar a beleza destas curas. Juntos.

[Bia Helena]

modelo: Daniele Dias 
foto capturada durante o workshop Nu de Conhecimento, ministrado por Hugo Fagundes na amada e extinta Oficina Cultura Carlos Gomes 



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