sobre receber

um dia, eu me peguei soterrada sob uma avalanche de necessidades não atendidas. de todo tipo e ordem, elas se sobrepunham em mim, calando-me de esgotamento sempre que eu tentava me mover daquela terra estranha onde ninguém parecia ter a ver com ninguém, e tudo que via era um caminhar sem companhia. o Mundo dos Alheios, deduzia eu, em desesperança.
apesar da dor, esta experiência me intrigava, pois os Outros, tão alheios quanto eu, tampouco me pareciam bem. pouco via em seus rostos a alegria genuína do coração aberto e ativo que me rondava os desejos mais íntimos.
haviam sorrisos, é claro. até mesmo alguma celebração. mas o quanto verdadeiramente refletiam entrega nestes corações, me escapava. frequentemente suspeitava desta entrega, porque me parecia roubar o controle sobre o meu eu, sobre os limites do espaço interno e pessoal que, a duras penas, cultivava. 
minhas necessidades eram um misto de desejo de colo e distância. eram contraditórias, misturadas, subversivas, e nem sempre compreensíveis à minha razão.
busquei, onde eu acreditava haver mais conhecimento do que em mim, algum esclarecimento sobre esta avalanche. encontrei belas e poderosas definições, ricos relatos, grandes vivências, partilhas que me falaram como verdades, e até mesmo alguma troca. o sonho da reciprocidade me beijava a face com toda a inconstância de um beija-flor, e sempre que ele voava, me sentia novamente a última das criaturas de valor sobre a Terra.
algo urrava em minhas entranhas e me tomava a sensação de lacuna, de vão, de abismo. à beira da desistência, frequentemente concluía que estava fadada a cuidar, mas quase nunca a me sentir cuidada. que jamais de fato receberia da mesma proporção do que eu estava disposta a dar. 
o fato é que quando tudo mais me cansava, eu apenas desejava que alguém me salvasse de mim mesma. a exaustão me aquietava, de certa forma, mas não respondia muitos dos porquês do meu coração. 
frequentemente, minhas necessidades pareciam um combate onde a vitória seria impossível. e sendo assim, acuada, eu combatia com as armas que encontrava. da minha forma reativa, agressiva, defensiva; onde escudo e flecha se confundiam, mas não satisfaziam, não me escapava a sensação de que, perdendo ou ganhando, seria invariavelmente derrotada pelo combate.
percorrido trajeto pedregoso, foi clareando em mim a percepção de que, do que muito que idealizava receber, quase nada conseguia me fazer a mim. era como se precisasse que alguém ensinasse a me amar. a identificar o que, em mim, se mostrava como necessidade, a validar e honrar esta descoberta como um presente lindo e raro, e por fim, a reconhecer que minhas muitas não-lineares necessidades, eram a parte mais bela de mim. que não apenas mereciam seu espaço, mas que era absolutamente determinante para o encontro de cara limpa comigo que eu desse prioridade e generosidade a esta prática recém-reconhecida.
escarafunchando necessidade atrás da outra, aprendi a me afinizar a algumas de suas faces. há aquelas que se mostrem mais facilmente e já as compreendo com certa desenvoltura; há as que se disfarçam e parecem querer ficar ocultas. mas não mais me enganam. agora sei que, uma a uma, todas elas carecem mesmo de ser descobertas e acolhidas pela pessoa que terá possibilidade de enxergar a que vieram: eu. 
aprendi que meu idioma interno é único e, se faz-se desafiador até mesmo em meu próprio coração, tantas vezes não há tradução que chegue para que outra pessoa o desvende, e, mesmo que eu o explique didaticamente, não teríamos como fazer do outro, tão transtornado pelo processo quanto eu mesma, o responsável por este caminhar que só meus pés conheceriam.
das faces das minhas necessidades que vim a conhecer e assimilar, nada me prepararia para a crua percepção de que, ao não dar o meu amor, quem adoece sou eu. 
dói, é claro, esperar o sentimento recíproco quando ele não vem na dose ou com o jeito que eu antecipo. dói o desamor de quem me cruza a vida. dói esperar que alguém possa prover uma troca que não se faz possível na prática. mas nada, absolutamente nada destroça mais, do que a amorosidade recolhida no peito. o que poderia ser amor, amedrontado por sua própria força e intenção, trancando-se de volta dentro de mim, algumas vezes até antes de mostrar-se à luz do dia. 
foi esta, entendi, a necessidade não-satisfeita que menos consigo suportar.
desassossego de tremer arranha-céu me bate quando uma remota hipótese toma ares de certeza. a necessidade que tenho de me dar é muito mais absoluta do que eu poderia supor. tanta, que às vezes gostaria de parar gente estranha na rua e falar da vida, oferecer um abraço. as inconveniências de ser tão relacional nesse corpo individual, que nasceu e morrerá sozinho, assustam. fazem querer correr a mim e a você também. 
talvez, o que tenho para oferecer não possa ser acolhido da forma como desejaria minha intenção. e por isto, eu talvez precise readequar o formato e o alcance em que este afeto chegará ao outro peito. talvez isto aconteça numa distância menos próxima do que idealizou o meu sentir. e está tudo bem. 
sim, porque há outros desejos e necessidades a considerar. é esta a dança, delicada dança do movimento das nossas órbitas. 
costuro agora este aprendizado: apenas tenho de mim, na plenitude de tudo o que me cabe, quando me dou inteiramente. não há meias medidas para o amor que habita o ser.


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